03 setembro 2005

A solidão...



A solidão
Por Ira Brito

A solidão é fera, disse o poeta. Sim, a solidão é fera. Ela chega e invade o coração. Abre um vácuo no peito, na alma. Sem avisar nem pedir licença a solidão muda a cor de nossa existência. Pode ser num um pôr-do-sol ou mesmo no raiar de novo dia. Quando ela chega o que é mais belo pode ficar feio e triste. Há quem chore de solidão. Ela causa vazio. Dói. Tudo parece escuro ou claro demais. Perde-se o gosto. Tudo parece insosso ou amargo demais. Tudo parece largo ou estreito demais. Tudo prece fugaz ou eterno demais. Uma carga de negatividade cobre a beleza em volta.
A solidão é amiga das horas, prima, irmã do tempo, disse o poeta. Ela anda com a multidão na rua, nos vagões do trem, nos ônibus coletivos. Senta no banco da praça e até dá milho aos pombos. A solidão incomoda. Pode descer das paredes como a umidade em dias de inverno. Às vezes, o gatinho ou o cãozinho de estimação a espanta. O rádio, a tevê ligados a distrai. A oração ao santo de devoção a acalma, a prece ao Anjo da Guardo a manda embora por alguns instantes. A entrega nas mãos de Deus a alivia.
Ela é fera, mas é domável. Quem sabe um cumprimento ao vizinho do apartamento ao lado. Puxar assunto qualquer enquanto desce ou sobe o elevador. Algum esforço para quebrar a frieza dos relacionamentos humanos. A solidão também é mestra. Ela pode ensinar lições que só o silêncio sabe dar.

Ladainha da Vergonha...




Ladainha da Vergonha...
Por Ira Brito

Deveríamos corar de vergonha... O escândalo da miséria deveria nos envergonhar. Crianças passando fome, perambulando pelas ruas, vendendo qualquer coisa deveria nos envergonhar. A morte de nossos índios, das crianças indígenas, dos pequenos inocentes deveria nos envergonhar. Idosos desrespeitados em filas de hospitais, em filas da previdência social deveria nos envergonhar. O preconceito racial e de classe em nosso país deveria nos envergonhar. A violência urbana deveria nos envergonhar. O medo que nos faz refém do semelhante deveria nos envergonhar. O abismo entre pobres e ricos no Brasil deveria nos envergonhar. O pedantismo da elite brasileira deveria nos envergonhar. Os privilégios dos deputados de nossa república deveria nos envergonhar. A corrupção na política deveria nos envergonhar. A religião que comunga com o sistema opressor e explora os pobres deveria nos envergonhar. O trabalho escravo de trabalhadores urbanos e rurais deveria nos envergonhar. A exploração sexual de crianças e jovens deveria nos envergonhar. A multidão de seres humanos que vivem jogados nas calçadas de nossas metrópoles deveria nos envergonhar. O alto lucro dos bancos e a baixa renda do trabalhador deveria nos envergonhar. Sim, deveríamos corar de vergonha de toda a ladroagem que há em nosso país enquanto o trabalhador honesto vive contando as moedinhas para completar o dinheiro do leite, do pão, da água, da luz, de tudo para viver dignamente.
O silêncio não pode imperar. Não se pode calar perante o poder que gera a miséria de tantos irmãos. Há um mal estrutural a ser combatido.

02 setembro 2005

Devaneio






Devaneio

Por Ira Brito

Dias desses me peguei pensando na morte. De repente me vi sozinho numa sala enorme, escura e vazia. Meu corpo estava coberto de flores e uma vela triste chorava e se consumia por mim. Senti a frieza dos pés e a dureza da pele pálida. Meu pensamento divagou rapidamente e já não me encontrava na sala, agora era levado para a sepultura. Uma multidão seguia meu funeral. Quando me vi sepultado tremi nas bases. Tive um arrepio que doeu a espinha dorsal. Súbito o pensamento sinistro foi embora. Ainda bem.
Não me pergunte por que pensei nisso. Nem eu sei. São essas coisas, que sem a gente deixar invadem a imaginação. Que um dia minhas carnes serão comidas pelos vermes ou transformadas em cinzas não há dúvida. Mas pensar nisso pra quê?! Repito: não sei por que imaginei tal cena. Não ando pensando em morrer. Um dia partirei, mas ainda tenho muito o que fazer por aqui. Vai pra lá pensamento agourento!
Apesar de o mundo está um caos, vale acreditar que a vida é bem mais. Muito mais que as amizades virtuais. Além dos relacionamentos superficiais e o prazer comprado. Muito mais que as aparências. É mais que aquela dor apertada, contida, sangrando lá dentro. A vida é mais que os perigos, é mais que os riscos. É bem mais que as regras. É mais que a paixão e além da razão. Muito mais que a solidão. É mais que o orgulho. Vai além dos nossos planos. A vida é bem mais que a droga. É mais que o preconceito. A vida é bem mais que a fome, a doença, a miséria. É muito mais que os desencontros. A vida é bem mais que a mediocridade. É mais que o convencional. Vai além do destino. É mais que a sorte. É muito mais que as perdas. A vida é bem mais que a morte.

01 setembro 2005

Rei do Baião




O Rei do Baião
Por Ira Brito
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Homem de voz forte
Luiz o rei do baião
O cantor dos esquecidos
Da cidade e do sertão
Cabra lá do Nordeste
Seu canto é uma oração...

Amante das coisas simples
Filho do interior Exú
Ninguém cantou o Nordeste
Tão bem como fizeste tu
Sanfoneiro dos melhores
Da terra do Maracatu...

Influenciou muitos artistas
O Velho Lua da folia
Seu canto ecoou além mar
Com ritmo e maestria
Seu baião é o registro
Da mais pura alegria...

Foi mesmo um cabra da peste
Sem medo de ser o que é
Cantou pra espantar tristeza
Até mesmo em cabaré
A sanfona gritava forte
O povo arrastava o pé...

Migrante em lugar distante
Sudeste terra prometida
Lugar pra começar a fama
E melhorar também a vida
Foi ali que o rei começou
E fez chorar com a Triste Partida....

Luz...








Luz...

Luz de brilho forte

luz de resplendor

luz que és a vida

dá-nos muito amor

livra-nos da peste

da guerra e do terror...

O tempo





O TEMPO
Por Ira Brito
Procurando as palavras
O tempo já me consome
O relógio me abre os olhos:
Decifra-me ou morre de fome
Eu sugo as tuas vísceras
E dou soco em teu abdome...

Sou puxado pelo braço
Pelo tempo irreversível

Não sei para onde vou
Nesse sufoco terrível
A angústia me espreme
É uma sensação horrível...

Águia com unhas de harpia
É a esfinge a nossa frente
O mito grego sempre esteve
Em nossa vida presente
Se não decifrar seus códigos
Descemos em goela quente...

Suas garras de leão
E cabeça de mulher
Questiona todo mundo
Do sabido ao mais mané
Quem vacilar tá frito
Morre o cético e o de fé...

As perguntas são muitas
Os enigmas até demais
Vão deixando os estigmas
E nos tirando a paz
Nem o mais vero exorcista
Expulsa este satanás...
[...]

Escadas e Ralos





Escadas e Ralos

Por Antonio Iraildo Alves de Brito

Aquela dor inexplicável, afogando desejos, sufocando a alma. Noite escura em pleno dia. Sabe lá o que é morrer de fome em meio à fartura! Vai e vem. Anda, corre. Respira, olha para o infinito, mas a dor não passa. Ao contrário, rasga lá dentro. Mãos trêmulas, olhos em chamas. Boca seca. Desengano.
Sobe todos os lances da escada correndo. Chega ao quarto ofegando. A dor inexplicável invade seu corpo exausto, vazio.
- O que se passa, meu Deus?
São muitos os questionamentos. Respostas quase sempre não as encontra.
No quarto, frente a frente com a solidão. Em constante duelo com seus monstros, sente-se incapaz de enfrentá-los. Cede. Num lapso, vê-se na caverna. Tudo são trevas. O medo apodera-se de seu ser frágil, outrora vigoroso, capaz de segurar um touro pelos chifres. Grita alto. Ouve o eco de sua voz. Triste criatura.
- Não, isso só pode ser pesadelo.
Quer acordar e ver o dia claro e o céu azul.
- Ah, como é lindo o pôr-do-sol!
No instante em que pensa em coisas belas o tempo parece eterno. Lembra-se da frase que leu em algum lugar: um instante de prazer justifica toda a vida. Saboreia a frase, degusta-a com toda fome. Sente o gostinho da vida. Gozos comprados. Sentimentos traídos. Luzes. Sombras. Vida.
Volta à escuridão. Ouve chiado de baratas. Movimento de rato. Gemidos. Choro. Arrepia-se todo. Treme. Alarma. Tenta correr. Corpo imóvel, gelado, suor frio. Sem saída.
- Ai que dor!
Cai. Jaz no silêncio que grita. Grunhe.
No momento é menos que um porquinho. Exaurido no chão da existência. Ferido de um mal sem cura.
- Ó mundo cruel! Ó humanos selvagens!
Grita o silêncio e a solidão. Ninguém ouve.
Há quem passe nos enormes corredores da casa. Ouvidos cerrados. Há quem corra atrás de compromissos. Agendas lotadas. Ninguém ouve. Apenas silêncio e solidão. Nem pai, mãe, irmão, amigo, parente.
- Se aparecesse um bom Samaritano.
Que nada! Somente paredes e segredos de uma vida fugaz.
Um corpo se mexe. Desperta. Abre os olhos. Está caído ali no banheiro. Molhado de urina e sujo de merda. Podre! Levanta-se cambaleando. Parece dar os primeiros passinhos. Despe-se. Carnes flácidas. Olha-se. Espelho sujo de respingos de pasta. Não gosta do que vê. Liga o chuveiro. Lágrimas e água. Pranto sem consolo. Angústia. Misto de vida e morte. Emburaca ralo adentro. Desce cano abaixo. Junta-se a outras sujeiras. Excrementos. Vermes asquerosos. Porras gosmentas. Pentelhos. Podridão que os humanos escondem para sobreviver.