30 setembro 2005

AINDA QUE...



Ainda que
Ira Brito

Ainda que o mundo semeie a cultura da morte, espalhe a violência, provoque a dor, banalize a vida.
Ainda que o mundo cultive o ódio, a guerra, os conflitos.
Ainda que o mundo incite à vingança, plante a discórdia, incentive o rancor.
Ainda que o mundo seja pedante, orgulhoso, interesseiro, covarde.
Ainda que o mundo não queira o diálogo, não escute.
Ainda que o mundo só pense em seus interesses, não tenha sentimentos, não tenha coração.
Ainda que o mundo seja falso, superficial, ingrato.
Ainda que o mundo só planeje o mal, só tencione para a desgraça.
Ainda que o mundo idolatre o lucro, adore o dinheiro.
Ainda que o mundo não sacie sua sede de consumir, crie necessidades.
Ainda que o mundo faça o supérfluo virar moda.
Ainda que o mundo almeje privilégios, sustente desejo de grandeza, seja apegado as riquezas.
Ainda que o mundo explore os pequenos, roube os indefesos, tire o pão da boca dos pobres.
Ainda que o mundo assalte e cause terror, pise, explore, escravize trabalhadores.
Ainda que o mundo não tenha piedade, não se compadeça dos sofredores.
Ainda que o mundo afogue multidões na miséria.
Ainda que o mundo não esteja nem aí para o que é humano.
Ainda que o mundo tampouco se interesse pela defesa do meio ambiente.
Ainda que o mundo prime pela corrupção, acumule bens, concentre poderes.
Ainda que o mundo faça os humanos rastejarem sem eira nem beira.
Ainda que o mundo nos dê as costas.
Ainda que o mundo...
Aqui não tem lição de moral. Um mundo melhor está em nossas mãos.

28 setembro 2005

CAOS


Esperança no caos


Ira Brito


Um cão triste na rua. Alguém o abandonou.
Seu olhar é desolado.
Não tem o brilho luminoso comum aos olhos dos cães.
Um humano passa e chuta o pobre cachorro.
Chuta por chutar.
Simplesmente pelo desejo de fazer o mal.
O pontapé é violento. O cão sai ganindo.
Se soubesse falar, com certeza,
suas palavras seriam pedido de socorro.
Um homem sentado na praça. Parece fora de si.
Não tem aparência humana.
Seus olhos são apagados.
Suas vestes, trapos imundos.
Exala cheiro desagradável.
Todos baixam a cabeça ao passar perto dele.
O homem estende a mão, suplica ajuda.
Sua súplica é choro sem lágrimas.
Uma criança mexe o cesto de lixo.
Estaria a procura de objetos recicláveis?
Suas mãozinhas sujas
reviram com rapidez os restos ali depositados.
A criança de olhos acesos, porém tristes.
Ela parece assustada.
De repente apalpa algo e, súbito,
assim de modo animalesco,
leva à boca uma coisa que parecia coxa de frango.
Come com desespero.
Uma Brasília cinza. Crise. Cadê o dinheiro?
O gato comeu. E ninguém viu. O gato sumiu.
Mensalão, mensalinho. Não desceu no ralo.
Pousou em contas gordas.
Saiu da goela das crianças famintas,
das dores de quem tem que ficar horas
e horas nas filas dos hospitais públicos.
A vida não é respeitada.
Há lamento, angústia. Revolta.
A corrupção é velha e fede.
Tudo anda meio revirado.
A vida está triste.
Mas a esperança ainda é devir.
Ela é mais que tudo isso.

27 setembro 2005

LÁGRIMAS

Por Ira Brito

Minha tristeza
Eu confesso
Minha tristeza!
Fernando tinha só quatro anos
E foi arrastado pela correnteza
Eu confesso
Minha tristeza!
Ele corria tão feliz na rua
Ingênua inocência a sua
A cabecinha dele
Era pura certeza.
Eu confesso
Minha tristeza!
Um buraco
Um bueiro
Traiçoeiro
De quem é a culpa?
São tantos...
Eu choro
Prantos...
Sua mãe viu
Quando a terra o engoliu
Quatro aninhos
Tá com os anjinhos.
Enquanto isso
O Congresso ferve.
Isso dói tanto...

***

Eu confesso
Minha tristeza!
Não sei o nome dele
Anônimo.
Jovem com certeza
Vinte e cinco anos apenas
Recebeu o envelope fechado
Deu positivo HIV
Em pleno viço e beleza
Perdeu a esperança de viver
Eu confesso minha tristeza...
****

Hoje rezo
Pelos que choram
Muitos choram
Quantas lágrimas!
Sentidas...
Eu também choro
Quanta lástima!
Sou humano e sofro
Choro.
Eu confesso
Minha tristeza...