16 setembro 2005

Vácuo





VÁCUO

Ira Brito

Ainda era escuro
Neblina na madrugada
O jovem manchou a vida
E degolou a namorada
O sol nem quis nascer
Naquela manhã nublada...

Dentro do apartamento
Dois corpos ensangüentados
Não era cena de filmes
Dos draminhas enlatados
Nem era letra de poema
Dos poetas exagerados...

Era a vida bem real
Além da televisão
O sangue duma jovem
Escorria pelo chão
Sete facadas apagavam
Um inocente coração...

Agora um corpo quente
O outro, todo gelado
O jovem feriu o pulso
Tá zonzo, desesperado
O silêncio é estridente
Está tudo consumado...

O cenário é de horror
A consciência grita
A porta está fechada
O apartamento agita
Alguém bate de fora
A maçaneta irrita...

O rapaz ali abraçado
À menina que o amou
Ele colado ao corpo
Que tantas vezes beijou
Como pode ter arrancado
Do jardim aquela flor?!

Duas garrafas vazias
Comprimidos faixa preta
Sangue em toda parte
Face da morte em careta
Duas vidas ali ceifadas
A droga é mesmo capeta...

Ficamos todos chocados
Com tal acontecimento
Parece que o mundo tá
Pintado assim de cinzento
Tudo está muito escuro
Em toda parte há lamento...

Somos parte de um todo
A dor não tá doutro lado
O universo mora em nós
Cada um é um culpado
Jogar pedra não resolve
Este mal estruturado...

Sabe lá o que é sentir
A terrível solidão
Sabe lá o que é o vazio
De um triste coração
Sabe lá o que preenche
Uma vida sem razão...

Há tanta gente que chora
Ou mesmo amarga a dor
Que reprime seu vazio
E não enxerga valor
Há jovens pedindo colo
E carentes de amor...

Somos todos convidados
A aprender uma lição
A pós-modernidade está
Congelando o coração
Da humanidade inteira
Que vive sem compaixão...

Todos nós padecemos
Dum tal esvaziamento
A juventude é vítima
E abafa seu lamento
Vez e outra uma tragédia
Nos tira do isolamento...

Acordemos para a vida
Respeitemos as diferenças
Nenhum humano é estranho
Chega de desavenças
A ordem é amar sempre
Independente de crenças...

14 setembro 2005

Morto Vivo




Morto Vivo

Ira Brito


Na calçada, algo parecido com corpo de gente. Enrolado com uns panos imundos. Move-se. Treme. Está encurvado. O Cobertor é curto. Temperatura baixa. Chão frio. E o corpo? Gelado, com certeza. Avenida movimentada. É o centro símbolo do poder econômico do país. Gente importante passa por ali. Parece até desfile de moda. Também se assemelha a formigueiro assanhado. Os rostos são diversos: lisos, rugados, tristes, assustados, carentes.
Ouve-se os toc-toc de sapatos. Todos têm pressa. Uns vão, outros vêm. Os prédios ostentam poder. Tão altos. Tudo muito limpo. Há torres querendo alcançar os céus. Barulho. Muito barulho. Pessoas saem de sob o chão. É a estação do metrô. O movimento é intenso.
O sol ainda não apareceu. Dia enevoado este. As lojas abrem-se. Suas vitrines são sedutoras. Anúncios, letreiros luminosos. Tudo é movimento. Apesar do dia embaçado a avenida não perde seu brilho.
Semáforos. Carros velozes, indo e vindo. Seus vidros são escuros, não se vê quem lá dentro está. Aqui fora não é diferente. Ninguém se vê. Pelo menos é o que parece. A sensação que se tem é de aglomeração solitária. Tropeçam uns nos outros, no entanto, o clima é de indiferença.
O tempo fica mais escuro. Começa a garoar. Apressam-se os passos. Abrem-se grandes e pequenos guarda-chuvas, todos pretos. O dia segue agitado. E o corpo? Ah, o corpo. Permanece ali. Ninguém deu conta dele. É mais um ser humano que deixa de existir aos olhos da multidão.

Esquina...





ESQUINA
Por Ira Brito
Na esquina, corpos à venda. Mercadoria humana. Não adianta disfarçar. Há corpos, sim. A noite é testemunha. São corpos jovens. Cheios de vida. A cidade olha, apenas olha. Na esquina a hipocrisia da cidade se revela. Os preconceitos se escondem. A vida se consome. Na esquina o pé é veloz. O pneu canta. O carro ultrapassa os limites, o pedestre corre. O farol põe limite. O florista oferece flores vermelhas. O panfletista quer se ver livre das chatas folhinhas. Na esquina as pessoas se cruzam e não se vêem. Alguém pede ajuda. O mendigo é quase pisado. Os tamancos desfilam. O bêbado cambaleia. Na esquina há medo de assalto. Há fumaça. Há cheiro de churrasco. Há churros à venda. Há pessoas correndo. Na esquina há crianças sujas com flanela nas mãos. Há rostos humilhados. Há desempregados na fila cruzando a esquina. Há olhos arregalados. Há pressa. Na esquina, o vendedor de balas. O vendedor de cintos e carteiras. Alguém grita: olha o passe! Na esquina há músicas tristes. Cds piratas.
Na esquina a calçada é mercado livre. É cama do sem-teto. É abrigo dos sem-vida. É um cantinho da cidade. A noite e o dia são testemunhas deste mundo à parte. A esquina é mais do que sinônimo de vida fácil. É mais que as expressões preconceituosas ditas por ai. Uma boa parte da cidade está na esquina. A esquina como sinônimo dos varridos pelos sistema injusto. A esquina no sentido dos anônimos que lutam pela sobrevivência.